segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Galway Kinnell - III Os sapatos de errância


1

Agachado junto à estante
na Loja do Exército de
Salvação, calçando, um atrás de outro,
estes sapatos por quem estranhos morreram, descubro
os sapatos de velho dos meus pés,
que levam os meus pés
como os primeiros pés, agarrando-se
à menor articulação e joanetes.

E agora saio,
em sapatos mortos, na nova luz,
sobre a calçada
da errância de alguém,
uma pontada
neste pé ou aquele ditado
vira ou fica ou
quarenta e três passos de gigante
para trás, assustado
é possível que já tenha perdido
o caminho: o primeiro passo, disse
a Maga que perscrutou o cristal, será
para perder o caminho.


2

De volta ao Hotel Xvarna, deixo
a porta destrancada arrombada tantas vezes,
desço o único
estore, caído como um relâmpago,
no apertado quarto debaixo da auto-estrada, descalço
os sapatos, disponho-os
lado a lado
junto à cama, enrolo-me
em lençóis tornados ásperos
pela acidez do amor, suor nocturno, poeira do ranger
de dentes, e deslizo novamente
para as trevas.


3

No quarto
principia agora
um estalido fraco,
rasantes batidas de
asas, ou grandes trabalhadas inspirações
de alguém velho ou de pulmões doridos.

E o velho
chulé nos sapatos, retornado
à vida pelos suores dos meus pés, como pelo
beijo de uma criança, sobe,
vai justo onde estou deitado
abraçando-me nos lençóis, deslizando
pelos tubos
de pulsantes cabelos sonolentos, e eu posso gemer

e sibilar, será
o gemido ou sibilar de um outro – o idoso pé
desses sapatos, o bêbedo
que morreu neste quarto, cujo infantil-sonho
terá tido um fartote
por causa desses pés apertados e calosos, pondo
beijos neles, enormes e cómicos,
através das meias, ou um irmão
enviado de volta queimado
pela queima de Asiáticos, suando
o seu pesadelo até à última gota
nalgum armazém branqueado
para moribundos – o gemido
ou o sibilar de alguém
que põe a nu os seus erros sob uma luz mais severa,
as suas lamentaçoes piores
que os peidos, grunhidos e arrotos
de um banheiro de homens em Oklahoma,
enquanto estremeço sob o seu pesadelo.

in Galway Kinnell, The Book of Nightmares, Houghton Mifflin Company, Boston & New York, 1971: 19-21.

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