O pintor que pinta a
cena acrescenta: as minhas mãos tendem para a aparição que não
aparece, para a partida que desfaz toda a cena, para a semelhança
que não se deixa reconhecer, para a obscuridade que partilha com a
luz o seu furto à representação, para uma tela e para um motivo
que me repete: «Não me toques».
É
essencial para a pintura não ser tocada. É essencial à imagem em
geral não ser tocada. É a sua diferença com a escultura, ou no
menos esta pode oferecer-se alternativamente ao olho e à mão –
bem como ao caminhar que roda em torna dela, aproximando-se até ao
toque e afastando-se para ver. Mas o que é a vista, senão, sem
dúvida, um toque diferido? Mas o que é um toque diferido, senão um
toque que aguça ou destila sem reserva, justo a um excesso
necessário, o ponto, a ponta e o instante pela qual a tocada (la
touche)
se destaca (se
détache)
do que ela toca, no próprio momento onde ela toca? Sem esse
desinteresse (détachement),
sem esse recuo ou esse retraimento (retrait),
a tocada não seria mais do que ela é e não faria mais do que ela
faz (ou melhor, ela não se deixaria fazer o que ela se deixa fazer).
Ela começaria a reificar-se numa tomada, numa adesão que a tomaria
na coisa e a coisa nela, correspondendo-se e apropriando-se uma à
outra depois uma na outra. Haveria identificação, fixação,
propriedade, imobilidade. «Não me lembres» vem também dizer:
«Toca-me num verdadeiro toque, retirado, não apropriativo e não
identificativo». «Acaricia-me, não me toques».
Não é que Jesus se
recuse a Maria Madalena: é que o verdadeiro movimento de se dar não
é o de se livrar uma coisa a ser empunhada, mas permitir o tocar de
uma presença, e por consequência o eclipse, a ausência e a partida
segundo as quais, sempre, uma presença deve dar-se para se
apresentar. Poder-se-ia analisar longamente: se me dou como uma coisa
(assim como se compreende correntemente tal fórmula), se me dou como
um bem apropriável, permaneço, «eu», por trás dessa coisa e por
trás desse dom, vigio-os e distingo-me (e isto, talvez, quando mesmo
me «sacrifico» como se diz, pois «sacrificando»-me dou-me
igualmente um valor sagrado, e o dom é-me revertido com
interesse...: pelo menos é uma interpretação que não se pode de
todo excluir). Se me dou separando a tocada, convidando assim a
procurar mais longe ou noutro lado e como que no oco da própria
tocada – mas não é isso que faz toda a caricia? Não é a batida
do beijo ou do beijar, de que se separa e de que se retira? – eu
não domino esse dom, e aquela/aquele que me toca e se retira, ou bem
que me guardo antes do seu toque, ela/ele realmente tirou de mim um
brilho da (minha) presença.
O
pintor pintando as mãos estendidas de Maria, pintando assim as suas
próprias mãos estendidas para o quadro – para a tocada justa,
feita de paciência e de acaso, feita com uma viva retirada da mão
que posa – esse pintor que nos estende a sua imagem para que a não
toquemos, para que não a guardemos numa percepção, mas ao invés
afim de que nos recolhamos até repôr em jogo toda a presença da e
na imagem, esse pintor implementa a verdade da «ressurreição»: a
aproximação da partida, no fundo da imagem, do singular da verdade.
É assim que ele pinta1
(mas aqui esse verbo pode exibir os seus sentidos até tocar todos os
outros modos da arte), ou seja é agora que ele «representa» no
sentido próprio em que essa palavra quer dizer «tornar intensa a
presença de uma ausência enquanto ausência».
***
Mas
não paremos por enquanto de escutar, pois elas não se apaziguam, as
harmónicas da palavra Noli
me tangere.
Relembremos primeiro, para insistir, que traduzindo o grego haptô
por tango,
o latim, que não dispõe de um verbo capaz do duplo sentido de
«tocar» e de «reter», comprometeu uma via única de
interpretação.2
Um constrangimento da língua está aqui como que diabolicamente
combinado com uma atracção surda solta pela própria narrativa e
por uma veia da sensibilidade de João. Pois que a sensualidade de
Maria Madalena responde a essa do próprio João, do autor da
narrativa que vem ainda se designar, pouco antes da cena, como «o
discípulo que Jesus amava».3
É ele, como bem se sabe, quem repousa «contra o seio de Jesus»
depois da última ceia.4
João e Madalena, uma pela pena do outro, mas o outro talvez numa
concorrência ou numa conjunção de amor – masculino e feminino –
por aquele a quem ele faz dizer: «Permanecei no meu amor».5
O
amor cristão é uma inverosimilhança, é um mandamento no qual a
«sublimidade»6
mascara menos que desvela, pelo menos ao olhar perfurante de Freud, o
carácter «antipsicológico do Superego colectivo» no qual o
mandamento é «inaplicável». Sem entrar aqui demais no exame desse
imperativo o qual ao mesmo tempo o próprio Freud reconhecia «o
interesse todo particular» de designar em suma sem desvios «a
agressividade constitucional do ser humano contra outrem», guardo
simplesmente esta observação: a impossibilidade do amor cristão
poderia ser da mesma ordem que a impossibilidade da «ressurreição».
A sua verdade comum tenderia a essa própria impossibilidade: não no
sentido em que qualquer milagre, aí psicológico, aqui biológico,
deveria voltar o impossível em possível, mas no sentido em que é
da parte do impossível que se trata de limitar, sem o possibilitar,
sem mesmo converter a sua necessidade em recurso especulativo ou
místico. Limitar-se no lugar do impossível vem a ser limitar aí
onde o homem se limita sobre o seu limite – esse da sua violência
e da sua morte: sobre esse limite, ele colapsa ou ele expõe-se, e de
uma maneira ou de outra ele perde-se necessariamente. Razão pela
qual esse lugar não pode ser senão um lugar de vertigem ou de
escândalo, o lugar do intolerável ao mesmo tempo que aquele do
impossível. Esse paradoxo violento não se dissolve, ele permanece o
lugar de um espaçamento tão intimo quanto irredutível: «Não me
toques».
***
Esse paradoxo
reconduz-nos uma vez mais, sobre um registo em aparência mais
elementar, à dupla conotação que se anexa à frase.
Ou bem ela pode
ressoar com o tom de uma ameaça num afrontamento: não me toques,
não tentes tocar-me, ou bato-te, e não te pouparei! Não em toques,
tu não medes a violência de que serei capaz. É uma última defesa,
como uma última advertência e como o último limite onde o direito
vai ceder à força, a uma força que se legitimará com a violência
da outra, ou do que antecipadamente se designou como a sua violência,
precisamente lançando esse aviso. E nesse último valor, a
interjeição ou a injunção forma ela mesma uma incitação à
violência. Pode ser que aquele que a lança seja aquele que quer a
violência.
Ou bem a frase
ressoa menos como uma ordem que como uma súplica que pode ser
lançada num excesso da dor ou nesse do gozo. Não me toques porque
não posso suportar agora esse sofrimento sobre a minha chaga – ou
essa voluptuosidade que exaspera até ao insustentável. Eu não
posso mais sofrer ou gozar: mas sofrer e gozar são necessariamente
levadas por uma lógica – ou por uma pato-logia escutada longe de
toda medicina – do excesso, no fim da qual uma acaba por cruzar a
outra enquanto vai empurrando cada vez mais. Ponto de cruzamento, não
de contracção, de retracção e de atracção. A deflagração da
qual sofrer pode gozar e gozar sofrer. Não queiras, nem mesmo
procures tocar nesse ponto de ruptura: pois com efeito, eu seria
quebrado(a).
Eu não procuro
atribuir essas conotações ou essas harmónicas ao inconsciente de
João nem a esse de Jerónimo; isso seria ridículo. Quero somente
indicar que elas estão por trabalhar nas leituras, nas
representações, nas solicitações dos seus textos e da cena que
esse texto faz acreditar, embora apesar dele, como uma cena estranha
onde um corpo glorificado se apresenta e se recusa a um corpo
sensível, cada um dos dois expondo a verdade do outro, um sentido
aflorando o outro mas as duas verdades permanecendo inconciliáveis e
empurrando uma à outra. Para trás! recua! recorda-me! (recordo-me?)
retira-te!
Uma tal discórdia
no próprio lugar do abraço definido e abismo sem fim da própria
verdade, seu sofrimento e seu gozo – a ascensão do corpo.
1
Itálico do autor.
2
Certas traduções recusam-na e escolhem a outra: «Não me lembres
assim», precisa mesmo a «Bíblia de Jerusalém», acrescentando
uma nota para indicar que Maria tem abraçados os pés de Cristo,
como está escrito em Mt 28, 9 onde é às «santas mulheres» em
conjunto que Jesus aparece. Desta maneira, uma tradução a que se
quer aliar filologia e espiritualidade cristã elide ou elude
sabiamente a conotação induzida até aí (sob benefício de
inventário) por todas as traduções, e da qual a pintura está
agarrada. Arriscar-se-á a supôr que uma razão análoga desviou os
músicos do episódio, uma vez que souberam bastas vezes fazer
cantar a Madalena «ao pé da cruz» ou «aos pés de Cristo»,
enquanto penitente no deserto (Agneletti, Rossi, Frescobaldi,
Caldara, etc.). Como arriscar a sensualidade musical num «noli
me tangere» cantado por Cristo? Desde então o episódio foi
cantado em certos dramas litúrgicos da Idade Média (cf. o Graduale
Rothomagense), e na música contemporânea encontra-se sob o
título de peças instrumentais, entre outros Erkki Melartin ou
Hirosuki Yamamoto. Contrariamente, Massenet compôs uma oratória,
Maria Madalena, a partir de
um texto de Louis Gallet, onde figurava o episódio do jardineiro;
não se trata exactamente de música «sacra», mas é por outro
lado muito impressionante que Maria Madalena faça parte de uma obra
onde ela ombreia, entre outras, Thaïs, Safo e Manon. Maria Madalena
figura igualmente, enquanto adoradora apaixonada, no «musical»
Jesus Cristo Superstar
de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice.
3
Jo 20, 2; João designa-se, sem se nomear, sete vezes no curso do
seu evangelho.
4
Jo 13, 23.
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