Focando-nos sobre o
toque, a tradução latina mais moderna induz necessariamente um
recurso às mãos das personagens. É com a mão que se toca, e é a
mão que primeiramente se toca. Em numerosas culturas, e em todo o
caso nessa dos pintores do Ocidente moderno, tocar a mão forma o
toque mínimo, esse que não dá curso a nenhuma intimidade mas que
assinala uma disposição pacífica, ou benevolente («touchez là!»1
diz-se no francês clássico quando se conclui um acordo ou para
terminar um diferendo).
Num grande número
dessas representações pictóricas, Noli
me tangere
dá lugar a um jogo de mãos impressionante: aproximação e
designação do outro, arabesco de dedos afilados, oração e bênção,
esquiço de uma razia (frôlement),
um afloramento, indicação de prudência ou advertência. Sempre
essas mãos desenham uma promessa ou um desejo de se ter ou de se
reter, de entrelaçar uns nos outros: na verdade, elas estão muitas
vezes não somente no centro do desenho, mas como o próprio desenho,
como as mãos do pintor que agencia e que manieta o desligar dos seus
dedos e das suas palmas. A mão bastas vezes tomou, na pintura
clássica, um papel determinante na organização do desenho, como um
signo ordenador de segundo grau, indexando os outros signos da cena.
Aqui nesta cena, tudo parece feito, o mais das vezes, para partir das
mãos e para a elas voltar: pois essas mãos são, com efeito, os
signos ou sinais da intriga de uma chegada (a de Madalena) e de uma
partida (a de Jesus), mãos prontas a se unir mas já desunidas e
distantes tal como a sombra e a luz, mãos que trocam saudações
misturadas a desejos, mãos que mostram os corpos enquanto designam o
céu.
As mãos de Maria
Madalena estendem-se para Jesus numa postura de solicitação: muitas
vezes abertas e as palmas no ar, dirigem-se a ele, elas procuram
tomá-lo ou, pelo menos, recolher dele, no limite do seu corpo ou da
sua veste, qualquer coisa da sua presença. As mãos de Jesus, pelo
contrário (essas mãos por vezes marcadas pelos pintores com
estigmas de cravos (des
clous)),
estendem-se muitas vezes para a mulher num gesto de uma notável
indecidibilidade: no mesmo tempo ele abençoa-a e deixa-a à
distância. Estamos confiantes que ela não a toma contra ele, nem
mesmo as mãos dela nas suas: pois se a saúda com o seu nome e se
doa com a sua aparição, não é para a reter, mas para enviá-la
para anunciar a boa nova. Mesmo que ele parta, ela desse igualmente a
partir e anunciar a novidade. É ela, aqui, a primeira enviada, a
primeira mensageira ao lado desses – os «irmãos» – que estarão
encarregues de difundir a mensagem. Tantas vezes as duas mãos de
Cristo assinalam, obliquamente, as duas direcções: uma apontada
para o céu, a outra impelindo a mulher para voltar à sua missão.
(Ticiano)
Mas acontece também
que as suas mãos quase chegam a tocar. Nem sempre é fácil a
decisão, pois em certos quadros a sobreposição de planos sem clara
profundidade permitem pouco saber se uma mão toca ou bem que se
encontra somente no primeiro plano: exemplar, neste ponto de vista, é
o Ticiano, onde a mão direita da mulher pode ser vista como passando
à frente da linha ou então como rasando aquela, e de tal modo que
Jesus está prestes a unir essa linha junto a si como que para
proteger o seu corpo (mesmo para proteger o seu sexo, desde logo
coberto, em tudo sublinhando, o épizônion2
clássico do crucificado, ocorrência deveras excepcional em toda a
série dos Noli…).
Segue o igual em Pontormo, Alonso Cano ou mesmo num dos frescos de
Giotto, no qual as mãos de Maria vêm ao contacto dos raios da
glória. Não é necessário, mas é recomendado, se me é permitido
expressar assim, pensar que a ambiguidade é querida e que somos
convidados a tomar toda a sobreposição de planos como tendo o valor
de um contacto. Tudo se passa como se os pintores se aplicassem
engenhosamente à volta da ambiguidade narrativa e semântica da
frase «Não me toques». Uma vez que se pode supor que ela sucede a
um contacto, a um primeiro vivo gesto de Maria que surpreendeu Jesus,
de tal modo que pode talvez ser pronunciada para prevenir um gesto
que o homem vê advir. Esta segunda versão parece a mais
frequentemente adoptada pelos pintores, mas está longe de se tratar
das mais notáveis.
(Alonso Cano)
(Giotto)
(Pontormo)
Frequentemente, pelo
contrário, a força própria de um quadro segue a par com uma
audácia particular no tratamento desse tocar ou desse toque. Assim,
verdade é que, muitas vezes, mal duas personagens se tocam ou se
afloram (Pontormo, Dürer, Cano), ou então Maria Madalena, num
número quase igual de casos, toca Jesus (Ticiano, Giotto), ou então
ainda, nalguns casos excepcionais,3
Jesus toca na mulher de uma maneira que nos arriscamos a dizer
suportada: uma vez em Pontormo (copiado por Bronzino),4
que ousa nada menos que pintar ou fazer pousar (faire
poindre)
o indicador de Cristo no seio de Maria, e assim é noutros artistas,
Dürer e Cano, bem como na pintura anónima de São Maximiano, onde
Cristo pousa visivelmente (senão ostensivamente) a mão sobre a
cabeça dela.
(Bronzino)
(Dürer)
Nada impede pensar
que para parar ou para declinar docemente um gesto de uma mulher, o
homem acabe por tocá-la (en
vienne à la toucher).
Seria, no entanto, mais provável que para esse fim o homem lhe
tomasse as mãos. Fazendo um outro gesto que não esse aí, ele
tornasse aquele que toca, e o sentido dessa frase encontra-se
deslocado, especialmente impróprio: «Não me toques, porque sou eu
que te toco.» E esse tocar deixa-se compreender, se se estiver
disposto a pensar de um quadro a outro, ou sobrepor os seus motivos,
como uma singularíssima combinação de distanciação e de ternura,
de bênção e de acarinhamento. «Não
me toques, porque eu toco-te, e este toque é tal que te deixo à
distância»5
(Ne
me touche pas, car je te touche, et cette touche est telle qu’elle
te garde à l’écart).
O amor e a verdade
tocam-se afastando-se: eles fazem recuar aquela ou aquele que eles
alcançam, pois a sua realização revela, no próprio toque, que
eles se encontram fora de alcance. É sendo inalcançáveis que eles
nos tocam e nos apertam. O que os aproxima de nós é o seu
afastamento: eles fazem-no-lo sentir, e esse sentimento é o seu
próprio significado. É o significado do toque que nos comanda a não
tocar. É tempo, com efeito, de o precisar: Noli
me tangere
não diz simplesmente «não me toques», mas mais literalmente «não
me queiras tocar» (ne
veuille pas me toucher).
O verbo nolo
é o negativo de volo:
significa «não queiras».6
Aí também a tradução latina desloca o grego mè
mou haptou
(cuja transposição literal teria sido non
me tange).7
Noli:
não o queiras, nem penses. Não somente não o faças, mas mesmo se
tu o fizeres (e talvez Maria Madalena fá-lo, talvez a sua mão está
já pousada sobre a mão daquele que ela ama, ou sobre a sua roupa,
ou sobre a pele do seu corpo nu), esquece-o de imediato. Tu não
tomas nada, tu nada podes ter ou reter, e é isso o que ele te faz
amar e saber. É isso o que nele é um saber de amor. Ama quem te
escapa, ama aquele que se vai. Ama-o que ele parte.
1
O mais semelhante será o português “aperta aí”, mas, uma vez
que o nosso dito nos parece mais firme que o “touchez là”
francês, que indica bem o toque aflorando a pele, permitimo-nos a
não traduzir.
2
Em grego no original. Traduzido à letra é cinto, cintura.
3
Lembramos, não pretendi inventariar a totalidade das representações
da cena na história da pintura, e não quis menos encontrar as
imagens de todas as referências que pude obter (por exemplo os
quadros de Metsu e de Mignard). Além disso, não foi possível
incluir todas as imagens neste volume.
4
O próprio Pontormo copiou um quadro, actualmente perdido, de
Miguel-Ângelo.
5
Na basílica de São Maximiano, em Provença, aí onde a lenda situa
a chegada de Maria Madalena vinda do deserto egípcio, uma clepsidra
supõe conter um fragmento da sua pele e esse relicário é nomeado
«o noli me tangere». No mesmo espaço encontra-se o quadro
anónimo mencionado anteriormente.
6
A segunda pessoa do indicativo apresenta-se por outro lado pela
forma non vis.
7
No entanto, e se Jerónimo, redigindo o texto latino, segue aqui o
uso, noli é a expressão de uma recusa ou de uma interdição
cortês, exactamente como o nosso «por favor, não toque». Colocar
o acento sobre o «por favor não» releva a violência
interpretativa. Ela é legítima, sob a condição de não ser
dissimulada.
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