sexta-feira, 9 de junho de 2017

Jean-Luc Nancy - Noli me tangere (cap. As mãos)

Focando-nos sobre o toque, a tradução latina mais moderna induz necessariamente um recurso às mãos das personagens. É com a mão que se toca, e é a mão que primeiramente se toca. Em numerosas culturas, e em todo o caso nessa dos pintores do Ocidente moderno, tocar a mão forma o toque mínimo, esse que não dá curso a nenhuma intimidade mas que assinala uma disposição pacífica, ou benevolente («touchez là!»1 diz-se no francês clássico quando se conclui um acordo ou para terminar um diferendo).
Num grande número dessas representações pictóricas, Noli me tangere dá lugar a um jogo de mãos impressionante: aproximação e designação do outro, arabesco de dedos afilados, oração e bênção, esquiço de uma razia (frôlement), um afloramento, indicação de prudência ou advertência. Sempre essas mãos desenham uma promessa ou um desejo de se ter ou de se reter, de entrelaçar uns nos outros: na verdade, elas estão muitas vezes não somente no centro do desenho, mas como o próprio desenho, como as mãos do pintor que agencia e que manieta o desligar dos seus dedos e das suas palmas. A mão bastas vezes tomou, na pintura clássica, um papel determinante na organização do desenho, como um signo ordenador de segundo grau, indexando os outros signos da cena. Aqui nesta cena, tudo parece feito, o mais das vezes, para partir das mãos e para a elas voltar: pois essas mãos são, com efeito, os signos ou sinais da intriga de uma chegada (a de Madalena) e de uma partida (a de Jesus), mãos prontas a se unir mas já desunidas e distantes tal como a sombra e a luz, mãos que trocam saudações misturadas a desejos, mãos que mostram os corpos enquanto designam o céu.
As mãos de Maria Madalena estendem-se para Jesus numa postura de solicitação: muitas vezes abertas e as palmas no ar, dirigem-se a ele, elas procuram tomá-lo ou, pelo menos, recolher dele, no limite do seu corpo ou da sua veste, qualquer coisa da sua presença. As mãos de Jesus, pelo contrário (essas mãos por vezes marcadas pelos pintores com estigmas de cravos (des clous)), estendem-se muitas vezes para a mulher num gesto de uma notável indecidibilidade: no mesmo tempo ele abençoa-a e deixa-a à distância. Estamos confiantes que ela não a toma contra ele, nem mesmo as mãos dela nas suas: pois se a saúda com o seu nome e se doa com a sua aparição, não é para a reter, mas para enviá-la para anunciar a boa nova. Mesmo que ele parta, ela desse igualmente a partir e anunciar a novidade. É ela, aqui, a primeira enviada, a primeira mensageira ao lado desses – os «irmãos» – que estarão encarregues de difundir a mensagem. Tantas vezes as duas mãos de Cristo assinalam, obliquamente, as duas direcções: uma apontada para o céu, a outra impelindo a mulher para voltar à sua missão.

(Ticiano)

Mas acontece também que as suas mãos quase chegam a tocar. Nem sempre é fácil a decisão, pois em certos quadros a sobreposição de planos sem clara profundidade permitem pouco saber se uma mão toca ou bem que se encontra somente no primeiro plano: exemplar, neste ponto de vista, é o Ticiano, onde a mão direita da mulher pode ser vista como passando à frente da linha ou então como rasando aquela, e de tal modo que Jesus está prestes a unir essa linha junto a si como que para proteger o seu corpo (mesmo para proteger o seu sexo, desde logo coberto, em tudo sublinhando, o épizônion2 clássico do crucificado, ocorrência deveras excepcional em toda a série dos Noli…). Segue o igual em Pontormo, Alonso Cano ou mesmo num dos frescos de Giotto, no qual as mãos de Maria vêm ao contacto dos raios da glória. Não é necessário, mas é recomendado, se me é permitido expressar assim, pensar que a ambiguidade é querida e que somos convidados a tomar toda a sobreposição de planos como tendo o valor de um contacto. Tudo se passa como se os pintores se aplicassem engenhosamente à volta da ambiguidade narrativa e semântica da frase «Não me toques». Uma vez que se pode supor que ela sucede a um contacto, a um primeiro vivo gesto de Maria que surpreendeu Jesus, de tal modo que pode talvez ser pronunciada para prevenir um gesto que o homem vê advir. Esta segunda versão parece a mais frequentemente adoptada pelos pintores, mas está longe de se tratar das mais notáveis.

(Alonso Cano)

(Giotto)

(Pontormo)


Frequentemente, pelo contrário, a força própria de um quadro segue a par com uma audácia particular no tratamento desse tocar ou desse toque. Assim, verdade é que, muitas vezes, mal duas personagens se tocam ou se afloram (Pontormo, Dürer, Cano), ou então Maria Madalena, num número quase igual de casos, toca Jesus (Ticiano, Giotto), ou então ainda, nalguns casos excepcionais,3 Jesus toca na mulher de uma maneira que nos arriscamos a dizer suportada: uma vez em Pontormo (copiado por Bronzino),4 que ousa nada menos que pintar ou fazer pousar (faire poindre) o indicador de Cristo no seio de Maria, e assim é noutros artistas, Dürer e Cano, bem como na pintura anónima de São Maximiano, onde Cristo pousa visivelmente (senão ostensivamente) a mão sobre a cabeça dela.

(Bronzino)

(Dürer)


Nada impede pensar que para parar ou para declinar docemente um gesto de uma mulher, o homem acabe por tocá-la (en vienne à la toucher). Seria, no entanto, mais provável que para esse fim o homem lhe tomasse as mãos. Fazendo um outro gesto que não esse aí, ele tornasse aquele que toca, e o sentido dessa frase encontra-se deslocado, especialmente impróprio: «Não me toques, porque sou eu que te toco.» E esse tocar deixa-se compreender, se se estiver disposto a pensar de um quadro a outro, ou sobrepor os seus motivos, como uma singularíssima combinação de distanciação e de ternura, de bênção e de acarinhamento. «Não me toques, porque eu toco-te, e este toque é tal que te deixo à distância»5 (Ne me touche pas, car je te touche, et cette touche est telle qu’elle te garde à l’écart).
O amor e a verdade tocam-se afastando-se: eles fazem recuar aquela ou aquele que eles alcançam, pois a sua realização revela, no próprio toque, que eles se encontram fora de alcance. É sendo inalcançáveis que eles nos tocam e nos apertam. O que os aproxima de nós é o seu afastamento: eles fazem-no-lo sentir, e esse sentimento é o seu próprio significado. É o significado do toque que nos comanda a não tocar. É tempo, com efeito, de o precisar: Noli me tangere não diz simplesmente «não me toques», mas mais literalmente «não me queiras tocar» (ne veuille pas me toucher). O verbo nolo é o negativo de volo: significa «não queiras».6 Aí também a tradução latina desloca o grego mè mou haptou (cuja transposição literal teria sido non me tange).7 Noli: não o queiras, nem penses. Não somente não o faças, mas mesmo se tu o fizeres (e talvez Maria Madalena fá-lo, talvez a sua mão está já pousada sobre a mão daquele que ela ama, ou sobre a sua roupa, ou sobre a pele do seu corpo nu), esquece-o de imediato. Tu não tomas nada, tu nada podes ter ou reter, e é isso o que ele te faz amar e saber. É isso o que nele é um saber de amor. Ama quem te escapa, ama aquele que se vai. Ama-o que ele parte.


1 O mais semelhante será o português “aperta aí”, mas, uma vez que o nosso dito nos parece mais firme que o “touchez là” francês, que indica bem o toque aflorando a pele, permitimo-nos a não traduzir.
2 Em grego no original. Traduzido à letra é cinto, cintura.
3 Lembramos, não pretendi inventariar a totalidade das representações da cena na história da pintura, e não quis menos encontrar as imagens de todas as referências que pude obter (por exemplo os quadros de Metsu e de Mignard). Além disso, não foi possível incluir todas as imagens neste volume.
4 O próprio Pontormo copiou um quadro, actualmente perdido, de Miguel-Ângelo.
5 Na basílica de São Maximiano, em Provença, aí onde a lenda situa a chegada de Maria Madalena vinda do deserto egípcio, uma clepsidra supõe conter um fragmento da sua pele e esse relicário é nomeado «o noli me tangere». No mesmo espaço encontra-se o quadro anónimo mencionado anteriormente.
6 A segunda pessoa do indicativo apresenta-se por outro lado pela forma non vis.
7 No entanto, e se Jerónimo, redigindo o texto latino, segue aqui o uso, noli é a expressão de uma recusa ou de uma interdição cortês, exactamente como o nosso «por favor, não toque». Colocar o acento sobre o «por favor não» releva a violência interpretativa. Ela é legítima, sob a condição de não ser dissimulada.

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