segunda-feira, 13 de março de 2017

Jean-Luc Nancy - 58 indícios sobre o corpo (cont.)



40) O corpo é o em si do para si. Na relação a si, ele é o momento sem relação. É impenetrável, impenetrado, silencioso, surdo, cego e privado de tacto. É maciço, grosso, insensível, não afectado. Ele é também o em si do para os outros, virado para eles mas sem qualquer por eles. Ele é somente efectivo – mas é-o absolutamente.

41) O corpo guarda o seu segredo, esse nada, esse espírito que não habita nele mas está disseminado, dispersado, expandido ao longo e tanto que o segredo nada esconde, nenhum retiro íntimo onde, um dia, seria possível ir descobri-lo. O corpo nada guarda: guarda-se como segredo. Porque o corpo morre e leva o segredo para o túmulo. E só a custo temos alguns indícios da sua passagem.

42) O corpo é o inconsciente: as sementes dos seus antepassados sequenciadas nas suas células, e os sais minerais ingeridos, e os moluscos acariciados, pedaços de madeira quebrados e os vermes que consomem o cadáver debaixo da terra, ou então a chama que o incinera e a cinza que se deduz e o resume num impalpável pó, e as pessoas, plantas e animais que ele cruza e passa rente, e as lendas das amas de antanho, e os monumentos arruinados cobertos de líquenes, e as turbinas enormes das fábricas que produzem ligas inéditas das quais fará próteses, e os fonemas rudes ou chiados cujo ruído fala a sua língua, e as leis gravadas nas estelas e os secretos desejos de morte ou imortalidade. O corpo toca em tudo do fundo secreto dos seus dedos ossudos. E tudo acaba por fazer corpo, até mesmo o corpus da poeira que se aglomera e dança um vibrante baile no mais fino raio de luz onde termina o último dia do mundo.

43) Porquê indícios mais do que caracteres, signos, marcas distintivas? Porque o corpo escapa, nunca está assegurado, deixa-se suspeitar mas não identificar. Ele pode sempre ser nada mais que uma parte de um corpo maior, que se leva para casa, no seu carro ou no seu cavalo, burro, colchão. Ele pode ser nada mais que um duplo desse outro corpo, tão pequeno e vaporoso, que chamamos de alma e que sai da sua boca mal morre. Possuímos, somente, indícios, traços, impressões, vestígios.

44) A alma, o corpo, o espírito: a primeira é a forma do segundo e o terceiro a força que produz a primeira. O segundo é, pois, a forma expressiva do terceiro. O corpo exprime o espírito, ou seja o meio de se jorrar para fora, de apertar a seiva, puxar o suor, arrancar a faísca e lançar tudo para o espaço. Um corpo é uma deflagração.

45) O corpo é nosso e é-nos próprio na exacta medida em que ele não nos pertence e se furta à intimidade do nosso próprio ser, se alguma vez esse aí existir, pelo qual, precisamente, o corpo nos faz seriamente duvidar. Mas nessa medida, que não sofre qualquer limitação, o nosso corpo é não somente nosso mas nós, nós mesmos, o mesmo será dizer até à sua morte e sua decomposição, na qual podemos e somos decompostos identicamente.

46) Porquê indícios? Porque não existe a totalidade do corpo, nenhuma unidade sintética. Há peças, zonas, fragmentos. Há um fim depois outro, um estômago, uma sobrancelha, uma minúscula unha, um ombro, um seio, um nariz, um intestino delgado, um canal do colédoco, um pâncreas: a anatomia é interminável, sustentada pela enumeração exaustiva das células. Mas esta última não faz a totalidade. É preciso, pelo contrário, recomeçar, o quanto antes, toda a nomenclatura por descobrir, se se puder, o traço da alma impressa sobre cada bocado. Mas os bocados, as células, mudam enquanto a contagem enumera em vão.

47) A exterioridade e a alteridade atingem o insuportável: a dejecção, a porcaria, o ignóbil desperdício, que ainda faz parte dele, que é ainda sua substância e sobretudo sua actividade, uma vez que é preciso que a expulse e que não é um dos seus menores serviços. Do excremento ao crescimento das unhas, dos pêlos ou de toda a espécie de verrugas ou malignidades purulentas, é preciso que ele os mande fora e separe de si o resíduo ou o excesso desses processos de assimilação, o excesso da sua própria vida. Disso, não se quer nem falar, nem ver, nem sentir. Sente-se vergonha e todos os tipos de desconfortos e constrangimentos quotidianos. A alma impõe o silêncio sobre toda uma parte do corpo, da qual ela é a própria forma.

48) Precisão do corpo: aqui, em nenhum outro lugar. É no fim do dedo gordo do pé, é na base do esterno, é no mamilo do seio, à direita, à esquerda, ao alto, em baixo, em profundidade ou na superfície, é difuso ou pontual. É dor ou prazer, ou antes, simples transmissão mecânica como esses toques do piano na polpa dos meus dedos. Mesmo o que é descrito de uma sensação qualquer como difusa observa a precisão do “difuso”, que irradia a cada vez de uma maneira bem precisa. A precisão do espírito é matemática, a da alma é física: ela expõe-se em gramas e milímetros, numa facção de ejecção ou rapidez de sedimentação, em coeficiente respiratório. A anatomia nada tem de redutor, contrariamente ao que pensam os espiritualistas: é, pelo contrário, a extrema precisão da alma.

49) Imprecisão do corpo: eis um homem por volta dos quarenta, muito seco e olhar nervoso, ar preocupado, talvez um pouco fugidio. Caminha com uma certa rigidez, poderá ser um professor ou médico, ou talvez ainda juiz ou administrador. Não é muito cuidadoso com a sua roupa. Tem as maçãs do rosto altas e a tez ligeiramente bronzeada: é, sem dúvida, mais de ascendência mediterrânica, em qualquer caso de todo nórdico. Além disso, é de estatura média. Presumimo-lo desajeitado, perguntamo-nos se terá autoridade ou decisão. Duvidamos do seu amor-próprio. É possível continuar neste registo, já que há tantos indícios dispersados num só e único corpo. Certamente, enganar-nos-emos em muitos pontos, talvez sobre todos. Mas não nos saberíamos absolutamente perdidos, a menos que um disfarce concebido com uma arte consumada nos possa enganar. Esse disfarce terá de pedir emprestado os seus traços a um qualquer fundo típico, esquemático, de espécie ou de género. Porque existem tipos humanos (há-os igualmente entre os animais). São, de forma indemne, biológicos ou zoológicos, fisiológicos, psicológicos, sociais e culturais, têm constantes de nutrição ou educação, de diferenciação sexual e de trabalho, a condição, a história: mas imprimem a sua tipologia, seja ao custo ou no seio de uma infinita diferenciação individual. Nunca poderemos dizer onde começa o singular e onde acaba o tipo.



Jean-Luc Nancy in Corpus. Paris, Métailié, col. Sciences humaines, édition revue et complétée 2006 (2000).

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