40) O corpo é o
em si do para si. Na relação a si, ele é o momento sem relação.
É impenetrável, impenetrado, silencioso, surdo, cego e privado de
tacto. É maciço, grosso, insensível, não afectado. Ele é também
o em si do para os outros, virado para eles mas sem qualquer por
eles. Ele é somente efectivo – mas é-o absolutamente.
41) O corpo guarda
o seu segredo, esse nada, esse espírito que não habita nele mas
está disseminado, dispersado, expandido ao longo e tanto que o
segredo nada esconde, nenhum retiro íntimo onde, um dia, seria
possível ir descobri-lo. O corpo nada guarda: guarda-se como
segredo. Porque o corpo morre e leva o segredo para o túmulo. E só
a custo temos alguns indícios da sua passagem.
42) O corpo é o
inconsciente: as sementes dos seus antepassados sequenciadas nas suas
células, e os sais minerais ingeridos, e os moluscos acariciados,
pedaços de madeira quebrados e os vermes que consomem o cadáver
debaixo da terra, ou então a chama que o incinera e a cinza que se
deduz e o resume num impalpável pó, e as pessoas, plantas e animais
que ele cruza e passa rente, e as lendas das amas de antanho, e os
monumentos arruinados cobertos de líquenes, e as turbinas enormes
das fábricas que produzem ligas inéditas das quais fará próteses,
e os fonemas rudes ou chiados cujo ruído fala a sua língua, e as
leis gravadas nas estelas e os secretos desejos de morte ou
imortalidade. O corpo toca em tudo do fundo secreto dos seus dedos
ossudos. E tudo acaba por fazer corpo, até mesmo o corpus da
poeira que se aglomera e dança um vibrante baile no mais fino raio
de luz onde termina o último dia do mundo.
43) Porquê
indícios mais do que caracteres, signos, marcas distintivas? Porque
o corpo escapa, nunca está assegurado, deixa-se suspeitar mas não
identificar. Ele pode sempre ser nada mais que uma parte de um corpo
maior, que se leva para casa, no seu carro ou no seu cavalo, burro,
colchão. Ele pode ser nada mais que um duplo desse outro corpo, tão
pequeno e vaporoso, que chamamos de alma e que sai da sua boca mal
morre. Possuímos, somente, indícios, traços, impressões,
vestígios.
44) A alma, o
corpo, o espírito: a primeira é a forma do segundo e o terceiro a
força que produz a primeira. O segundo é, pois, a forma expressiva
do terceiro. O corpo exprime o espírito, ou seja o meio de se jorrar
para fora, de apertar a seiva, puxar o suor, arrancar a faísca e
lançar tudo para o espaço. Um corpo é uma deflagração.
45) O corpo é
nosso e é-nos próprio na exacta medida em que ele não
nos pertence e se furta à intimidade do nosso próprio ser, se
alguma vez esse aí existir, pelo qual, precisamente, o corpo nos faz
seriamente duvidar. Mas nessa medida, que não sofre qualquer
limitação, o nosso corpo é não somente nosso mas nós, nós
mesmos, o mesmo será dizer até à sua morte e sua decomposição,
na qual podemos e somos decompostos identicamente.
46) Porquê
indícios? Porque não existe a totalidade do corpo, nenhuma unidade
sintética. Há peças, zonas, fragmentos. Há um fim depois outro,
um estômago, uma sobrancelha, uma minúscula unha, um ombro, um
seio, um nariz, um intestino delgado, um canal do colédoco, um
pâncreas: a anatomia é interminável, sustentada pela enumeração
exaustiva das células. Mas esta última não faz a totalidade. É
preciso, pelo contrário, recomeçar, o quanto antes, toda a
nomenclatura por descobrir, se se puder, o traço da alma impressa
sobre cada bocado. Mas os bocados, as células, mudam enquanto a
contagem enumera em vão.
47) A
exterioridade e a alteridade atingem o insuportável: a dejecção, a
porcaria, o ignóbil desperdício, que ainda faz parte dele, que é
ainda sua substância e sobretudo sua actividade, uma vez que é
preciso que a expulse e que não é um dos seus menores serviços. Do
excremento ao crescimento das unhas, dos pêlos ou de toda a espécie
de verrugas ou malignidades purulentas, é preciso que ele os mande
fora e separe de si o resíduo ou o excesso desses processos de
assimilação, o excesso da sua própria vida. Disso, não se quer
nem falar, nem ver, nem sentir. Sente-se vergonha e todos os tipos de
desconfortos e constrangimentos quotidianos. A alma impõe o silêncio
sobre toda uma parte do corpo, da qual ela é a própria forma.
48) Precisão do
corpo: aqui, em nenhum outro lugar. É no fim do dedo gordo do pé, é
na base do esterno, é no mamilo do seio, à direita, à esquerda, ao
alto, em baixo, em profundidade ou na superfície, é difuso ou
pontual. É dor ou prazer, ou antes, simples transmissão mecânica
como esses toques do piano na polpa dos meus dedos. Mesmo o que é
descrito de uma sensação qualquer como difusa observa a precisão
do “difuso”, que irradia a cada vez de uma maneira bem precisa. A
precisão do espírito é matemática, a da alma é física: ela
expõe-se em gramas e milímetros, numa facção de ejecção ou
rapidez de sedimentação, em coeficiente respiratório. A anatomia
nada tem de redutor, contrariamente ao que pensam os espiritualistas:
é, pelo contrário, a extrema precisão da alma.
49) Imprecisão do
corpo: eis um homem por volta dos quarenta, muito seco e olhar
nervoso, ar preocupado, talvez um pouco fugidio. Caminha com uma
certa rigidez, poderá ser um professor ou médico, ou talvez ainda
juiz ou administrador. Não é muito cuidadoso com a sua roupa. Tem
as maçãs do rosto altas e a tez ligeiramente bronzeada: é, sem
dúvida, mais de ascendência mediterrânica, em qualquer caso de
todo nórdico. Além disso, é de estatura média. Presumimo-lo
desajeitado, perguntamo-nos se terá autoridade ou decisão.
Duvidamos do seu amor-próprio. É possível continuar neste registo,
já que há tantos indícios dispersados num só e único corpo.
Certamente, enganar-nos-emos em muitos pontos, talvez sobre todos.
Mas não nos saberíamos absolutamente perdidos, a menos que um
disfarce concebido com uma arte consumada nos possa enganar. Esse
disfarce terá de pedir emprestado os seus traços a um qualquer
fundo típico, esquemático, de espécie ou de género. Porque
existem tipos humanos (há-os igualmente entre os animais). São, de
forma indemne, biológicos ou zoológicos, fisiológicos,
psicológicos, sociais e culturais, têm constantes de nutrição ou
educação, de diferenciação sexual e de trabalho, a condição, a
história: mas imprimem a sua tipologia, seja ao custo ou no seio de
uma infinita diferenciação individual. Nunca poderemos dizer onde
começa o singular e onde acaba o tipo.
Jean-Luc Nancy in Corpus. Paris, Métailié, col. Sciences humaines, édition revue et complétée 2006 (2000).
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