segunda-feira, 6 de março de 2017

Jean-Luc Nancy - 58 indícios sobre o corpo (cont.)



30) Corpo próprio: para ser próprio o corpo deve ser estrangeiro e assim descobrir-se apropriado. A criança olha a sua mão, o seu pé, o seu umbigo. O corpo é o intruso que só pela efracção pode penetrar no ponto presente a si que é o espírito. Este último é, além disso, tão pontual e apertado sobre o seu ser-a-si-em-si que o corpo somente consegue penetrar por exorbitância ou exogastrulando a sua massa como uma bossa, como um tumor fora do espírito. Tumor maligno, do qual o espírito não recupera.

31) Corpo cósmico: pouco a pouco o meu corpo toca tudo. O meu traseiro na minha cadeira, os meus dedos no teclado, cadeira e teclado na mesa, mesa no chão, o chão nas fundações, as fundações no magma central da terra e nas deslocações das placas tectónicas. Se sigo noutro sentido, pela atmosfera chego às galáxias e, enfim, aos limites sem bordo do universo. Corpo místico, substância universal e marioneta puxada por mil fios.

32) Comer não é incorporar, mas abrir o corpo ao que se engole, exalar o dentro com sabor de peixe ou figo. Correr é desdobrar esse mesmo interior em passadas, em ar vivo sobre a pele, em respiração apressada. Pensar bascula os tendões e as várias nascentes em jactos de vapor e em marchas forçadas sobre grandes lagos salgados sem horizonte discernível. Nunca há incorporação, mas sempre saídas, torções, evasões, recortes ou transbordos, cruzamentos, oscilações. A intussuscepção é uma quimera metafísica.

33) “Este é o meu corpo” = asserção muda e constante da minha única presença. Ela implica uma distância: “este”, eis aquilo que ponho à vossa frente. É “o meu corpo”. Duas questões se envolvem imediatamente: a quem envio esse “meu”? e se o “meu” marca a propriedade, qual a sua natureza? – Quem é, pois, o proprietário e qual a legitimidade da sua propriedade? Não há uma resposta para o “quem”, uma vez que esse é tanto o corpo como o proprietário do corpo, e não há “propriedade” já que é tanto direito natural como direito do trabalho ou conquista (assim eu cultivo e trato o meu corpo). “Meu corpo” envia, portanto, à inassinabilidade dos dois termos da expressão. (Quem te deu o teu corpo? Ninguém mais senão tu, porque não haveria qualquer programa suficiente, nem genético, nem demiúrgico. Mas então, tu antes de ti? Tu por trás do teu nascimento? E porque não? Não estou eu sempre nas minhas próprias costas e na proximidade de alcançar o “meu corpo”?)

34) Na verdade, “meu corpo” indica uma possessão, não uma propriedade. Melhor, uma apropriação sem legitimação. Eu possuo o meu corpo, eu trato-o como quero, tenho sobre ele o jus uti et abutendi. Mas, por sua vez, ele possui-me: ele puxa-me ou incomoda-me, ofusca-me, pára-me, impele-me, repele-me. Nós somos um par de possuídos, um casal de dançarinos demoníacos.

35) A etimologia de “possuir” estaria na significação de “estar/ser sentado sobre”. Eu estou sentado sobre o meu corpo, criança ou anão às cavalitas de um cego. O meu corpo está sentado sobre mim, esmagando-me com o seu peso.

36) Corpus: um corpo é uma colecção de peças, de bocados, de membros, de zonas, de estados, de funções. Cabeças, mãos e cartilagens, queimaduras, suavidades, jorros, sono, digestão, horripilação, excitação, respirar, digerir, reproduzir-se, reparar-se, saliva, sinóvia, torções, cólicas e grãos de beleza. É uma colecção de colecções, corpus corporum, cuja unidade é uma questão para si mesma. Mesmo a título de corpo sem órgãos, existem, quando mesmo, cem órgãos, cada qual atraindo para si e desorganizando o todo que nunca mais chega a se totalizar.

37) “Este vinho tem corpo”: põe-se na boca uma espessura, uma consistência que se acrescenta ao sabor; ele deixa-se tocar, acariciar e rolar pela língua entre as bochechas e contra o palato. Não se satisfará deslizando-o para o estômago, ele deixará a boca atapetada com uma película, uma fina membrana ou um sedimento do seu gosto e do seu tónus. Poder-se-á dizer: “este corpo tem vinho”: ele sobe à cabeça, solta vapores que entontecem e entorpecem o espírito, ele excita, incita ao toque para electrizar o seu contacto.

38) Nada é tão singular como a descarga sensível, erótica, afectiva que certos corpos produzem sobre nós (ou então, inversamente, a indiferença em que nos deixam certos outros). Tal conformação, tal tipo de magreza, tal cor de cabelos, um olhar, um espaçamento dos olhos, um movimento ou um desenho do ombro, do queixo, dos dedos, quase nada, mas um acento, uma dobra, um traço insubstituível… Não é a alma, mas o espírito de um corpo: o seu pico, a sua assinatura, o seu odor.


39) “Corpo” distingue-se de “cabeça” como de “membros” ou, pelo menos, de “extremidades”. Tendo isso em conta, o corpo é o tronco, o portador, a coluna, o pilar, o fundo da fundação. A cabeça reduz-se a um ponto; ela não tem, na verdade, uma superfície, é feita de buracos, orifícios e aberturas por onde saem e entram espécies diversas de mensagens. As extremidades, de modo semelhante, informam-se pelo meio ambiente e, por aí, executam certas operações (andar, alcançar, agarrar). O corpo permanece estranho a tudo isso. Ele está colocado sobre si, em si: não decapitado, mas a sua cabeça atrofiada e presa a ele como um alfinete.


Jean-Luc Nancy in Corpus. Paris, Métailié, col. Sciences humaines, édition revue et complétée 2006 (2000).

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