10) O corpo é
também uma prisão para a alma. Ela purga uma pena cuja natureza não
é fácil de discernir, mas foi muito imponente. Isto porque o corpo
é muito pesado e desconfortável para a alma. É preciso digerir,
dormir, excretar, suar, sujar-se, magoar-se, adoecer.
11) Os dentes são
as barras da clarabóia da prisão. A alma escapa-se pela boca em
palavras. Mas as palavras são sempre eflúvios do corpo, emanações,
dobras leves de ar saídas dos pulmões e aquecidas pelo corpo.
12) O corpo pode
tornar-se falador, pensante, sonhador, imaginante. Ele sente a todo o
tempo qualquer coisa. Ele sente tudo o que é corporal. Ele sente as
peles e as pedras, os metais, as ervas, as águas e as chamas. Ele
não pára de sentir.
13) Portanto quem
sente é a alma. E a alma sente primeiro o corpo. Ela sente-o em
todas as partes que a contêm e a retêm. Se ele a não retivesse,
toda ela se escaparia em palavras vaporosas que se perderiam no céu.
14) O corpo é
como um puro espírito: ele é inteiramente a si e de si, num único
ponto. Se quebraramos esse ponto o corpo morre. É um ponto
situado entre os dois olhos, entre as costas, no meio do fígado, em
redor de todo o crânio, em plena artéria femoral, e ainda em muitos
outros pontos. O corpo é uma colecção de espíritos.
15) O
corpo é um envolvente: ele serve, pois, para conter aquilo que é
preciso, depois, desenvolver.1 O desenvolvimento é interminável. O corpo finito contém o
infinito, que não é nem a alma, nem o espírito, mas antes o
desenvolvimento do corpo.
16) O corpo é uma
prisão ou um deus. Não há meio. Ou melhor, o meio são os quadris,
uma anatomia, um escorchado e nada disso é corpo. O corpo é um
cadáver ou é glorioso. O que partilham um cadáver e um corpo
glorioso é o esplendor radiante e imóvel: em definitivo, a estátua.
O corpo realiza-se na estátua.
17) Corpo e corpo,
lado a lado ou face a face, alinhados ou afrontados, o mais das vezes
somente misturados, tangentes, tendo pouco a ver entre eles. Mas
assim os corpos que não trocam propriamente nada enviam quantidades
de sinais, de anúncios, piscares de olhos ou gestos sinaléticos.
Uma olhadela bem-disposta ou altiva, uma crispação, uma sedução,
uma cedência, um peso, um brilho. E tudo aquilo que podemos colocar
sob as palavras “juventude” ou “velhice”, como “trabalho”
ou “tédio”, como “força” ou “embaraço”… Os corpos
cruzam-se, raspam-se, pressionam-se. Apanham o autocarro, atravessam
a rua, entram no supermercado, sobem aos carros, esperam a sua vez na
fila, sentam-se no cinema depois de ter passado à frente de dez
outros corpos.
18) O corpo é
simplesmente uma alma. Uma alma enrugada, oleosa ou seca, peluda ou
calosa, áspera, lisa, crocante, flatulenta, irisada, nacarada,
emplastrada, coberta de organdis ou camuflada de caqui, multicolor,
coberta de óleo, de feridas, de verrugas. É uma alma em acordeão,
trompete, ventre de viola.
19) A nuca é dura
e é preciso sondar os corações. Os lóbulos do fígado cortam o
cosmos. Os sexos humedecem-se.
1
No original lê-se: “Le corps est une enveloppe: il sert donc à
contenir ce qu’il faut ensuite développer”. Optámos
traduzir “enveloppe” por “envolvente”, e não por
invólucro, de modo a manter o jogo que se estabelece, na língua
francesa, com “développer”.
Jean-Luc Nancy in Corpus. Paris, Métailié, col. Sciences humaines, édition revue et complétée 2006 (2000).
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