quinta-feira, 19 de maio de 2016

A escrita do amor por entre quartos e corredores (fim)

4.
há o tempo que passa pelo corpo
da raiz afectuosa ao mapa das escoriações
e outro pelo pensamento sussurrando-nos
uma falsa idade tão verdadeira
quanto é a justa palavra dizendo a imprecisa emoção

por dentro dos nossos olhos nessa treva a íntima
e inacessível diáfana imagem de cada um
está na sua plena juventude
e eu tenho-te assim de duas maneiras
e tu três idades: a que eu vejo sendo
a tua natividade expandindo-se
aquela que te vês sentindo-te
e essa intermédia névoa cobrindo-te
resultado de estranha alquimia do coração
e te veste com a perdida glória
revelando que a decadência do corpo
é a frágil atractiva natureza das coisas
a beleza sem artifícios e o contínuo toque do homem

e vamos pela corrente impossibilitados de suspender
a passagem da vida que tudo atravessa
e olhando-nos o espanto pelos rostos envelhecendo
toma o meu e o teu se houver tal coisa como o amor

hoje sou mais do que aquele que outrora conheceste
não olhes pois para trás para esse caminho pisado
vão-se aluindo as casas a história
aperta-se na sua trama
não haverá nunca recomeço só o que pesa
se sente mais suportável menos desgostoso
as máscaras bem ajustadas o futuro despido

sei que haverá um instante em que todos os corpos
e tempos e imagens por fim se reconhecem
virá por um brilho de miragem como por um
sopro fremindo as superfícies nivelando água
e terra num mesmo horizonte ondeado
como as praias ao fim da tarde e o vento arruma a vista
para o violeta medeando noite e dia

a vida começa aí numa variação de ritmos e síncopes
ondulações sovando estes corpos do estômago à garganta
e o pensamento faz-se limite aéreo de uma morada
escura e selvagem atormentada pelo fundo feminil
de teus olhos e faz-se igualmente anjo de duplo traço a néon
pirilampo que me guiará após a tua morte
através da memória onde jazes num banho a ouro
sombreando o tranquilo argênteo mar

tu
esse instante que foi uma singularidade irrepetível
e se unindo a mim o gesto de quem se tocou tocando
de quem se escolheu a ser escolhido
para tornar outra a vida
partilhando tudo o que se queria até a rotina
o enquadramento de uma coreografia dos corpos
em que a dança procura o encontro para a grafia da pupila
por onde o mundo presta vassalagem para se arquivar em nós

e eu
ser-te-ei ainda um mistério
como quando tu me surges ao despertar
ou serei frio fogo e pálido céu de descontentamento
anúncio indício do fim
lançarás ainda a fateixa dos teus braços
ancorando este bote à deriva neste mar

e não respondendo sair-te-á ainda a fúria
pelos teus olhos fulminando-me com o silêncio
guiando e ditando-me os meandros do medo
enrolar-te-ás numa concha afundando-te noutra
dimensão como revirado olho de furacão
aspirando a que fique desaparecendo e ascenda
à ausente presença dos anjos e deus
e perdido por estes corredores e quartos
grave o amor escrito noutras páginas
quando a tua mão se apertar noutra

e após a tua partida definitiva se eu permanecer
diz-me como farás chegar a resposta a
quem te ama e não acredita noutro mundo
e tempo senão o da partilha
quanto dura um coração no escuro
de nenhum porto uma despedida
quantos dias faz
quanto mais de vida é preciso perder
no luto
e o acontecimento de tu ou eu
qual a sua palavra ou escrita quando
somente se pode fechar o espaço pelo toque

Fridenand Axt Brombeerstrauch

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