5.
Levanto-me do calor para uma talhada de melancia
fresca. Foi colhida há pouco na horta vizinha,
juntamente com feijões para a sopa, pimentos para
a salada e courgette para fritar. Como o coração da
melancia e ofereço as cascas à porca Rosita, companhia
nas traseiras dos aposentos. O mar foi à grelha. Fico
só, durante alguns minutos, em meditação vertical.
Se Buda não cruzasse as pernas, teria o Tibete melhor
sorte? Se Cristo não perdoasse, saberiam os cristãos
dos crucificados? Se Maomé fosse à grelha, saberia
a carne de porco? Se as vacas não fossem sagradas,
haveria fome na Índia? Se os judeus andassem sobre
as águas, precisariam de terra? Deito-me. Fecho
os olhos. Prometo voltar a acordar para o pesadelo.
*
6.
Não te despeças dos bons dias, do cumprimento de uma paz
que será a raiz da harmonia. Caminha na mesma, ainda que só
e pesado; arrasta pelo caminho os pés de sangue tardado.
Quando desceres ao Sul, onde até à noite o céu morre
azul, leva contigo pelo menos um sonho. À gravidade real
opõe a aguardente de medronho. Que o manjar dos deuses
seja esta quietude, que a tua esperança seja um sempre por
cumprir. Não mais a finitude ficará por definir. Agora volta
os olhos sobre ti mesmo, adianta o adiamento da felicidade.
Sempre que a esmo alguém perece, exclamam os nervos da
Idade. Poderás porém alhear-te, de mochila às costas partir
para um lugar onde o sossego seja a arte de construir: fortes
de areia, braços de mar, uma teia onde morar; nós de terra e
ilhas candentes, tudo o que tão próximo já tão longe sentes.
*
Brasas
Enquanto as brasas não se transformam em cinza,
cinzelo no sangue as memórias que ficaram
algures retidas nos enredos da vida.
Não posso deixar que sejam apenas a dança dos canaviais,
os acenos dos pinheiros à passagem do vento.
Não posso permitir que sejam tão-somente memórias,
dois nomes cinzelados no tronco de uma árvore
porventura transformada em carvão, em brasa, em cinza.
in Henrique Manuel Bento Fialho, Rogil, Nazaré, Volta d'Mar, 2012: 12, 13 e 17.
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