domingo, 15 de maio de 2011

da vida dos mortos

"Nas planícies do além, as almas dos mortos não pululam até ao infinito, como se poderia julgar. Não. O seu número é certamente grande, mas no entanto limitado, e o cortejo dos novos mortos que afluem sem parar vem compensar um gradual apagamento de almas defuntas que se dissipam no nada. Em verdade, os defuntos só persistem no além enquanto há vivos cá na terra que neles pensam. Os mortos alimentam-se da recordação que os vivos lhes endereçam, e desvanecem-se para todo o sempre logo que o último vivo lhes consagrou o seu derradeiro pensamento. As almas irradiam nos infernos uma vida que não é mais do que o reflexo dos pensamentos dos vivos. Um certo grande homem põe-se de súbito a flamejar, a sua voz retumba como uma trombeta de cobre ou um sino de bronze. Significa isto que, neste nosso mundo, uma multidão recolhida celebra a sua memória. Ou então, mais modestamente, é uma mulher, uma sombra de mulher velha que se tinge de um tímido reflexo de cor: nesse instante, uma criança lançou uma flor sobre a sua campa."

in Michel Tournier, Eleazar ou a Nascente e a Sarça, Porto, Edições Asa, col. Literatura, trad. de G. Cascais Franco, 1997: 51.

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